Alexandra Amaral
da Silva
IFFarroupilha- Campus Júlio de Castilhos
Este
escrito-reflexão se destina a analisar em que espaço reside as resistências
provocadas pela proposta de reestruturação curricular do ensino médio, sendo
entendido como um campo em disputa; bem como qual é o raio de atuação da Gestão
do Sistema de Ensino que sinaliza as possibilidades de qualificar o ensino
público estadual no contexto do novo milênio.
Compartilhamos
do pressuposto de que numa pesquisa não há neutralidade axiológica, portanto,
observar, refletir e teorizar sobre um objeto de estudo quando se está
diretamente vinculado a ele, corre-se o risco de cairmos em determinismos,
buscando justificativas que comprovem nossas hipóteses e refutem o
contraditório.
Por
esta razão, no desejo de aprimorarmos nossa prática gestora, e com a
consciência da necessidade de distanciarmo-nos epistemologicamente, para nela
nos aproximarmos, optamos em realizar esta análise à luz do enfoque crítico, no
qual podemos citar Vitor Henrique Paro e Michael W. Apple, buscando articular à
pedagogia progressista a qual temos como um dos principais educadores
brasileiros Paulo Freire.
A
práxis (ação-reflexão-ação) se constitui, no âmbito da educação, numa postura
inexorável, e a partir deste pressuposto que justificamos a escolha (e
necessidade) de analisarmos as dificuldades e as possibilidades da gestão
frente à reestruturação curricular do ensino médio do RS, constituindo-se como
problema a ser equacionado. As problematizações levantadas são resultado de um processo
de escuta, visto que foram e estão sendo realizados momentos de formação para
implantarmos e implementarmos novo currículo ao ensino médio da escola pública
estadual.
Se
entendermos a educação como um processo complexo, porque os seres humanos, que
o fazem existir, são também complexos na sua dimensão de sujeitos históricos,
uma vez que produzem e são produzidos pela cultura e/ou culturas e ideologias, reunindo-se
numa organização chamada sociedade, e esta, por sua vez, é influenciada pela
educação; nos parece que estamos num círculo, sem conseguir identificar seu
início e seu fim. Mas de fato, é a partir deste entendimento que passaremos a
admitir que as hipóteses levantadas a respeito das resistências enfrentadas na
implementação da proposta de reestruturação curricular não podem ser levianas ou
superficiais, ou seja, não se configura num simples “não querer mudar”, situa-se
num contexto sócio histórico, que envolve os professores, alienando-os de seu
trabalho, obstaculizando a problematização da função social da escola e
consequentemente de sua intervenção pedagógica na perspectiva de transformação
da realidade.
Portanto,
o grande desafio da Gestão do Sistema de Ensino é compreender as razões de
determinadas posturas dos professores e, com isto, garantir espaços de formação
permanente aos mesmos, subsidiando com aporte teórico-metodológico as
discussões sobre os princípios orientadores da proposta, os quais possibilitam
um pensar crítico do nosso próprio trabalho.
Freire já nos comunicava que,
É pensando
criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima
prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser
de tal modo concreto que quase se confunda com a prática. O seu
"distanciamento" epistemológico da prática enquanto objeto de sua
análise, deve dela "aproxima-lo" ao máximo. Quanto melhor faça esta
operação tanto mais inteligência ganha da prática em análise e maior
comunicabilidade exerce em torno da superação da ingenuidade pela rigorosidade.
Por outro lado, quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a ou as razões
de ser de porque estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de
promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade
epistemológica. Não é possível a assunção [ato ou efeito de assumir] que o
sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem a disponibilidade para
mudar. Para mudar e de cujo processo se faz necessariamente sujeito
também" (FREIRE, p.43)
Com
esta citação ilustramos que um processo de mudança requer a reflexão de nossa
práxis, pois para além de um pensar técnico, nossa prática é também orientada
pelas nossas concepções políticas. É a partir da teoria que reorientamos nossa
prática, e é sobre o pensar sobre ela que podemos elaborar novas teorias.
A
Reestruturação Curricular do Ensino Médio: o caminho percorrido.
A
proposta de Reestruturação Curricular do Ensino Médio do Rio Grande do Sul foi
emanada da Gestão da Secretaria Estadual, tendo sida apresentada através de um
texto base que subsidiaria o debate da 1ª Conferência Estadual do Ensino Médio;
seguindo um cronograma de etapas para a conferência que compreendeu o período
de setembro de 2011 à dezembro de 2011.
O
texto base apresenta-se como o resultado de uma elaboração que considerou o
plano de governo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394/96,
buscando ser uma
contextualização
de uma proposta para a educação do século XXI, o qual tem a responsabilidade de
oferecer à juventude e ao mundo um novo paradigma, uma mudança estrutural que
coloque o Ensino Médio para além da mera continuidade do Ensino Fundamental,
instituindo-o efetivamente como etapa final da educação básica.”(DOCUMENTO
BASE, 2011)
Assim
como, pelo diagnóstico da Rede Estadual de Ensino traduzido pelos índices
revelados pelo Censo Escolar da Educação Básica 2010, os quais revelaram que a
escolaridade líquida na faixa etária de 15-17 anos era de 53%; que o abandono
era de 13% e a reprovação de 21%. Associado à constatação de um currículo
fragmentado, dissociado da realidade sócio-histórica, e dos avanços
tecnológicos da informação e da comunicação, justifica-se a urgente intervenção
nesta realidade, na perspectiva de construir uma nova proposta
político-pedagógica, a qual supere a imobilidade da gradeação curricular, a
exclusão, priorizando o protagonismo do jovem e efetivando uma identidade para
o Ensino Médio.
Os
eixos estruturantes para a proposta constituem-se em: Politecnia, Trabalho como
princípio educativo, interdisciplinaridade, pesquisa, seminário integrado e
avaliação emancipatória.
Sem
a intenção de discutir cada um dos eixos, ou analisar teoricamente a proposta, visto
que cada um nos renderia no mínimo um artigo, consideramos relevante de forma
sintética, expô-los, para situarmos o leitor na concepção que “suleia” a
proposta, para com isto focarmos no problema de nossa reflexão: a resistência
que observamos ao longo deste período em realizar o debate do conteúdo da
proposta.
Neste
sentido, explicitaremos algumas falas presentes nas etapas da conferência, que
sob nosso ponto de vista foram significativas para dialogarmos com as questões
que envolvem a gestão do sistema: “A proposta é autoritária. Recupera a
pedagogia tecnicista de formação de mão-de-obra para o mercado de trabalho. O
governo só está preocupado em reverter os índices e não de fato com a qualidade
do ensino.” Bem, destas três afirmações poderíamos discorrer sobre, no mínimo,
três conceitos amplos, complexos e relacionais: autoritarismo, tecnicismo e
qualidade. Porém, ratificamos nossa delimitação da análise, sem desconsiderar
por completo os elementos subjacentes, mas querendo compreender a resistência na
adesão da proposta, que se transforma no desafio para a gestão, sem com isto
cairmos na ingenuidade de autodefesa; problematizamo-nos: quais são as
atribuições e/ou papel da gestão do sistema de ensino?
Seres humanos e suas relações
Com
o intuito de levantar algumas questões que envolvem a nossa condição humana
nesta sociedade e no contexto da educação, sem a pretensão de travarmos um
debater filosófico, mas sim, e tão somente, identificarmos de que indivíduo
estamos nos referindo, para que com algumas acepções possamos seguir nossa
reflexão. Sinteticamente podemos definir o ser humano como um animal racional
(Aristóteles), constituído pela razão ocidental, a qual tem como fundamento a
ciência estruturada e estruturando um pensamento lógico em busca da verdade. O
sujeito moderno é este que pensa ter consciência de si e deseja dominar a
natureza (e acrescentaria dominar o próprio homem), Nietzsche afirma que a
razão ocidental criou um homem que sustenta um modelo idealizado de vida, na
qual a cultura – produto de relações de poder- é tida como natureza e a
história como verdade; disto resulta a ausência de um pensamento crítico.
Partindo
deste pressuposto podemos afirmar que cada de um de nós é produto de processos
históricos que delinearam o modo e o modelo de nossas estruturas de pensamento,
os quais não são independentes da relação com o outro- ser pensante/racional-
com os quais fazemos esta história e constituímos a sociedade; numa relação
dialética, complexa e por vezes não consciente de todos os elementos contidos nela,
como um deles: a Ideologia hegemônica.
Segundo
Apple, “a sociedade como a conhecemos é mantida, em grande parte, em seus
aspectos positivos e negativos, por regras implícitas do senso comum e por
paradigmas de pensamento, pela hegemonia e também pelo poder.”
E
toda esta “engrenagem” é reproduzida pelo processo de escolarização, no qual o
currículo configura-se como artefato poderoso da manutenção deste status quo.
Ignorar a historicidade/intencionalidade do currículo que “formata” nosso
pensamento e comportamento é o resultado de nossa própria formação enquanto sujeitos-educadores.
Todavia,
sabemos que a questão é mais profunda do que apresentado até aqui, porém nosso
objetivo não é o de aprofundarmos cada um destes conceitos, mas sim de
apontarmos um quadro referencial para situarmos o espaço do qual estamos nos
referindo.
Neste
momento, consideramos relevante abordarmos o contexto histórico, ou seja, nós
que somos resultado de movimentos de rupturas e continuidades, vivemos um
grande dilema: como colocar a educação/ escola a serviço da democratização da
sociedade, a qual é marcada pelas desigualdades sociais- produções do
capitalismo, num Estado “criado” para exercer o poder hegemônico?
Vitor
Paro é um crítico do Estado, este que historicamente não investiu na educação
como um bem público, meio pelo qual as pessoas se emancipam, ao contrário
precarizou as relações de trabalho dos docentes, desde a oferta das formações
iniciais à desvalorização salarial; mantendo uma orientação de uma educação
“bancária”, tão criticada por Paulo Freire. Portanto, a nosso ver, o imaginário
dos professores está marcado por esta realidade, porém o aprofundamento teórico
se faz necessário, pois quando determinadas forças políticas chegam ao ‘poder’,
através do sistema democrático-voto direto, as contradições são indiscutíveis,
visto que o “poder” não está contido em um lugar, mas nas relações econômicas e
sociais. Não ter claro esta correlação de forças é cairmos na ingenuidade do
senso comum, levando-nos a acreditar que todas as mazelas sociais serão
resolvidas num curto espaço de tempo (mandato governamental). E entre estas
mazelas estão as condições concretas da condição de trabalho dos professores.
Esta
constatação, nos leva a crer que este talvez seja um dos primeiros elementos da
resistência à adesão da reestruturação curricular. Não debater, refletir, mudar
significa negar o Estado; adjetivar a Gestão como autoritária.
Gestão
é uma terminologia empregada na educação a partir da reabertura
política-democrática, a qual tenta superar o caráter técnico, pautado na
hierarquização e controle. A gestão compreende uma essência política e deve ter
o foco na preocupação com o pedagógico, neste sentido esta visão e a relação
que daí surge é um processo recente, que apresenta contradições, afinal estamos
numa estrutura hierarquizada. Logo, o método é mais que forma é conteúdo. Ao
propor a conferência para debater o ensino médio, levou-se em consideração este
elemento, pois movimentou a rede de forma coletiva, apresentando princípios que
dessem conta de problematizarmos a realidade na qual estamos inseridos.
A
formação acadêmica inadequada dos professores, constatada por inúmeras
pesquisas, e denunciada nos trabalhos de Vitor Paro, o qual afirma que “a
concepção de mundo dos docentes não coaduna com os fins da transformação social
e da universalização do saber”, constituem-se para nós como o segundo elemento
presente neste processo de mudanças. O não domínio epistemológico resulta nas
afirmações ouvidas ao longo deste tempo, onde se torna um ato doloroso admitir
que a ineficiência da escola também tenha uma parcela de contribuição de cada
um de nós.
A
universalização do acesso à escola pública, não condiz com a universalização do
saber, como um instrumento de emancipação humana, isto comprova-se nos dados de
reprovação e abandono, o que nos leva a concluir que a escola está sendo a
instituição primeira da legitimação da exclusão social, uma reprodutora do
sistema sócio-econômico vigente. Esta lógica precisa ser invertida, e ela está
permanentemente atravessada pela dialética freireana: “se a educação sozinha não pode transformar a sociedade, tampouco sem ela
a sociedade muda”.
À guisa de conclusão
Como fragilidade podemos expor a não pretensão de discorrer e
pormenorizar cada um dos elementos-conceitos surgidos nesta breve reflexão, mas
minimamente compreender que existem elementos históricos, sociais, culturais,
políticos e econômicos que nos constituem enquanto sujeitos no mundo, e estes
delineiam nossas posturas.
Parece-nos que há um consenso neste movimento, a educação precisa
de investimentos e a escola tradicional está fadada ao fracasso. Portanto,
mesmo permeado de contradições, o processo de mudança desencadeado pela gestão
do sistema de ensino, quando propõe a problematização do currículo é uma
atitude não autoritária, mas legítima dentro do Estado de Direito. Com vistas à
construção de uma “educação do futuro” perante as exigências do novo milênio a
palavra-chave é: re-aprender a aprender.
A desacomodação gera resistências, que devem ser compreendidas
pelo gestor, porém não se tornando o limite para os avanços e superações.
Consideramos que um grande desafio é proporcionar e criar as condições
necessárias e concretas para que o conjunto dos sujeitos da educação
aproprie-se do conhecimento, através da formação continuada e permanente,
reformulando conceitos, e mais que constatando realidades, elevar suas
consciências a patamares de atuação política-pedagógica, garantindo um ensino
público de qualidade, que segundo Paro, passa por mudar métodos e conteúdos, ou
seja, por uma reestruturação curricular.
E por fim podemos afirmar que ter na proposta o Trabalho como
princípio educativo significa levar os docentes a refletirem suas próprias
condições, reconhecendo-o como responsável pela formação humana e pela
constituição da sociedade. Há um longo caminho pela frente, pois mudanças
paradigmáticas não resultam de movimentos desprovidos de conflitos, mas,
sobretudo de disposição, e mais uma vez invocando a pedagogia freireana, “é
caminhando que se faz o caminho!”
REFERÊNCIAS
APPEL,
Michel W. Ideologia e Currículo.
Tradução de Vinícius Figueira. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.
FREIRE,
Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes
necessários à prática educativa. 21ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
_____________.
Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
MOSÉ,
Viviane. O homem que sabe: do homo
sapiens à crise da razão. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2012.
PARO,
Vitor Henrique. Gestão Democrática da
Escola Pública. 3ª ed. São Paulo: Ática, 2008.
SEDUC.
Proposta Pedagógica para o Ensino Médio.
Porto Alegre, 2011.